Pra ler ouvindo: ain’t no rest for the wicked
Sempre falo que o despertador peão é inexorável, incansável, obstinado e, com certa frequência, insuportável.
Peão nenhum resiste: quando é a hora de acordar, é a hora de acordar. Pode ser horrível ser um escravo da vontade de estar ativo e hoje não foi diferente. Apesar de exausto das conturbadas últimas semanas do ano, exatamente às 7 horas abro o olho e o cérebro desperta como se tivesse acabado de receber uma descarga de adrenalina: que coisas eu tenho que resolver hoje?, é o primeiro pensamento que surge, seguido da lembrança que hoje é dia de não fazer nada. Finalmente.
Um comichão se espalha pela pele: como assim, não fazer nada? Lembro que tenho um problema de vazamento no telhado que está improvisado mas ainda precisa de uma solução definitiva. Em um corajoso ato de resistência a produtividade, decido que isso pode esperar mais um ou dois dias.
Fecho o olho e fico deitado prestando atenção na inquietude da minha cabeça, já querendo fazer um café e, no mínimo, ir jogar um joguinho planilhável (onde a alta produtividade/performance é o objetivo).
Sabendo que a noite exigiria estar acordado para celebrar a virada de ano, sigo com meu bravo ato de resistência. Fecho os olhos e fico rolando na cama, atormentado pela improdutividade. Minha mão encontra o gato deitado na cama, ronronando, e fico acariciando ele até eu conseguir pegar no sono novamente.
Acordei outra vez acelerado – comemorei silenciosamente que consegui dormir mais, esperando já ser tarde. Peguei o celular e lutando contra o brilho da tela vejo que ainda são 8 horas. Protesto em silêncio contra mim mesmo e num esforço consciente faço o impensável: nada. Não me movo, não levanto, não fico olhando o celular.
Decido prosseguir em um combate onde a vitória é impossível: “eu vou deita o despertador peão”, penso imóvel e de olhos fechados.
Afundo a cabeça debaixo do travesseiro buscando a escuridão completa, vou tateando procuro o gato que segue dormindo ao meu lado e que começa a ronronar quando encosto nele. Talvez seja este o meu caminho para o descanso, uma atividade prazerosamente improdutiva como acariciar o gato.
Deitado e na lutapara não virar um brasileirinho, segurando meu ímpeto de fazer algo produtivo, luto contra as ideias que vão surgindo, que vão de varrer a calçada a lavar louça, ariar panela. Segui aguerrido mantendo os olhos fechados. Descansar, descansar, descansar, eu repetia mentalmente, como um mantra.
Adormeci. Não posso dar certeza, mas provavelmente sonhei com a vitória do peão sobre o ímpeto produtivo.
Acordei (pela última vez este ano, turupish) e já era mais de 9 horas. “Venci!”, pensei sonolento. Sonolento? O que tá acontecendo? Eu descansei mais, eu deveria no mínimo estar com o ânimo de quando acordei antes.
Acordei completamente lesado. O cérebro percebendo tudo com atraso, com dificuldade pra compreender o mundo – comparável a jetlag ou a um comprimido de melatonina que bateu errado.
Cansado demais para fazer qualquer coisa, incapaz inclusive de descansar. Pelo menos 3 horas em um estado de dormência, mas acordado. Um zumbi, perambulando pela casa, e só tem uma coisa que é possível fazer neste estado: doomscrolling no youtube.
O despertador peão é inexorável, quando é hora de levantar, é hora de levantar.