Não existe livre-arbítrio

As ideias deste artigo começaram a surgir depois de ler Homo Deus, do Yuval Noah Harari, e assistir Dark, da Netflix. Livro e série recomendadíssimas se o assunto te interessar. A verdade é que tudo começou mesmo nesta thread do Twitter e estou refletindo sobre isso desde então.

Com alguma frequência, aos domingos como pizza amanhecida no café da manhã. 

O cheiro de café passando se espalhando pela cozinha enquanto o queijo derrete e escorre pela lateral da fatia de pizza, estalando quando encosta na chapa aquecida sobre o fogão. Assim começou meu domingo. 

O melhor café da manhã posível

E como de costume, depois do café da manhã, minha intenção era assistir algum desenho, refletir porque insisto em alguns animes e sentar no escritório para jogar pela manhã toda — brigar por mais marketshare no lucrativo mercado que se tornou a colonização de marte, em Offworld Trading Company (tá na Steam).

Fecho a janela da cozinha para evitar o vento gelado — janela limpíssima, que limpei ontem cedo quando acordei, e ainda não sei bem por quê. Ingrata é a tarefa de limpar vidros, sempre aparece uma manchinha! Ao fazer isso, sinto o cheiro de gás e lembro que minha tentativa anterior de resolver o problema de vazamento não teve sucesso.

Arrasto o fogão para a frente, encho a esponja de detergente e penso: agora vai. Depois de uns vinte minutos de uma minuciosa vistoria com muita espuma de detergente, soltando e apertando as braçadeiras metálicas nas mangueiras de gás — por dentro e por fora da cozinha, aparentemente o problema estava sanado. Sem risco de explosões e sem cheiro de gás na cozinha posso voltar a dedicar minha manhã a arte de passar tempo e refletir sobre a vida – e ver animes para reclamar com propriedade do gênero.

Terminei de comer, liguei a TV e fui lavar a louça, como de costume. Percebi que o fogão estava sujo. O fogão de 4 bocas tem as duas traseiras sempre ocupadas por uma chapa de ferro, sempre pronta e aguardando um pão com manteiga pra ser dourado (ou minha pizza pra requentar).

As duas bocas da frente acumulavam pingos de óleo, sujeira e algum pó. Vinte minutos e isso seria resolvido com uma esponja, estimei inocentemente. Joguei um pouco de água quente e detergente pra soltar tudo, removi as grades das bocas frontais e comecei. 

Me considero uma pessoa prática e pouquíssimo adepta de limpezas profundas. Não me entenda mal, eu gosto de coisas limpinhas. Mantenho a louça lavada (e a pia brilhando, modéstia a parte), o banheiro limpo, o banho é diário. Eu não gosto é do conceito de “lavar a casa” exceto em casos extremos — tipo derrubar uma panela de óleo na cozinha. Eu vivo pelo conceito de manutenção preventiva: uma limpeza frequente e leve evita a necessidade de você se debruçar para esfregar o chão com escova, balde e sabão.

Mas isso não é válido para todo mundo. “O gserrano não liga pra sujeira” — foram estas palavras que a Bianca Brancaleone encontrou, de maneira quase educada, para falar pras visitas aqui em casa no último final de semana que ela me considera um porco.

Minha estimativa de vinte minutos para dar uma tapeada e deixar o fogão aceitável estava completamente errada – passei mais de hora limpando pois mudei a estratégia. Retirei a chapa e todas as grades das bocas, limpei detalhadamente as quatro bocas, limpei a frente do forno, os botões das bocas, a lateral do fogão que nem fica visível mas as vezes respinga alguma coisa. Lavei até a chapa – tirando todo o gostinho delicioso das comidas anteriormente preparadas – que erro. Limpei até aquela inútil tampa de vidro que até hoje não compreendo porque fogões tem. Ingrata é a tarefa de limpas vidros!

Ainda não compreendi o que me motivou ou porque eu, livremente, optei pela ingrata tarefa de fazer uma limpeza profunda quando uma limpeza rápida teria o mesmo efeito prático (e higiênico, acredite).

É com esta longa introdução que começo o assunto que realmente interessa: não existe livre-arbítrio.

Se existisse posso afirmar que eu não optaria por tarefas “sem sentido” como as que fiz nesta fatídica manhã de limpeza, ou ainda na semana anterior limpando os vidros das janelas. Como é que eu tomei estas decisões e por quais motivos?

Para discutir se existe ou não livre-arbítrio, temos que discutir duas questões: o que sou “eu” e o que é o livre-arbítrio.

O que sou eu?

Vamos começar pelo quem sou “eu” – o “idivíduo”.

A palavra vem do latim “individuus”, formada por in + dividuus – e significa indivísivel.

E este é o início do problema. Nosso cérebro tem 2 hemisférios que trabalham, normalmente, de forma coordenada para formar o “eu”. E o cérebro, até onde sabemos, é o que coordena nossas memórias, pensamentos, ideias e desejos.

Existem pesquisas do Roger Sperry sobre o “cérebro dividido”, que renderam a ele o nobel em medicina em 1981 que comprovam que o indivíduo na verdade é divisível – ao separar os hemisférios do cérebro (isso era um tramaneto para epilepsia, para evitar convulsões) o “indivíduo” poderia ter ações e vontades diferentes, dependendo de qual hemisfério está respondendo.

Em um destes estudos questionaram um adolescente sobre o que ele gostaria de fazer quando adulto e ele respondeu, verbalmente, que gostaria de ser desenhista. A fala e o raciocínio lógico são desempenhados em maior parte pelo hemisfério esquerdo do cérebro, que estava no comando nesta resposta.

Os pesquisadores queriam uma resposta do outro hemisfério cerebral, então espalharam letras na mesa e escreveram e um papel “o que você gostaria de fazer quando adulto?” e deixaram este papel visível apenas no campo visual esquerdo do jovem (que é controlado pelo hemisfério direito) – o hemisfério direito não tem controle vocal, então o adolescente não falou nada, mas usou a mão esquerda para “soletrar” com as letras da mesa e escrever “corrida de carros”.

Há outros relatos de experimentos com resultados impressionantes citados em Homo Deus – você pode pesquisar por “split brain experiment” que encontrará alguns interessantes.

Já temos o primeiro ponto esclarecido para continuar, com o que sabemos hoje podemos assumir que existem 2 “eus” atuando em conjunto e de forma coordenada para controlar nosso corpo, ideias e lembranças.

O que é o livre-arbítrio?

Para afirmar sua inexistência é necessário estabelecer também o que é o livre arbítrio.

Se eu for pelo dicionário, começando pelo significado de arbítrio

Resolução, determinação dependente apenas da vontade.

Poder, faculdade de decidir, de escolher, de determinar, dependente apenas da vontade; livre-arbítrio.

Dicio.com.br

E o dicionário Michaelis tem uma definição para livre-arbitrio:

Faculdade que o homem tem de escolher ou decidir conforme sua própria vontade, sem que haja condicionamento ou qualquer interferência nessa escolha;

Dicionário Michaelis

Podemos assumir que quando “eu” escolho, sem que haja condicionamento, estou realmente praticando o livr arbítrio. E entramos na complexa questão do que é ou não condicionamento.

Alguns anos atrás eu fiz um curso de “neuromarketing” (acho o termo buzzword, no fundo é “só” marketing) e vi várias pesquisas e estudos do quanto anúncios impactam nosso cérebro e induzem nossas compras.

Num dos estudos um grupo de pessoas eram impactadas por um anúncio antes de entrar numa loja, outro não. As impactadas compravam muito mais a marca anunciada do que o grupo não impactado – mas a maioria afirmava ter não estar sendo influenciada pela propaganda.

Existem outras pesquisas (também apresentadas no Homo Deus) de testes com ratos de laboratório que são controlados por controle remoto. O funcionamento deste “controle” é através de estímulos elétricos em partes específicas do cérebro – com isso os pesquisadores conseguiam induzir o rato a ir para a esquerda ou direita. O estímulo nada mais faz do que induzir uma súbita “vontade” do rato ir para a esquerda ou direita. Se separássemos os ratos em 2 grupos, A (recebendo estímulos cerebrais) e B (sem estímulos cerebrais) e 90% do grupo A escolhesse ir pra esquerda, provavelmente eles também diriam que foram para a esquerda porque queriam e que não foram influenciados a isso, tal qual nossos livres consumidores indo as compras.

Quantas propagandas você viu hoje? Quantos tweets com ideias de outros estão martelando em algum dos hemisférios desta tua cabecinha?

Eu realmente escolhi limpar as janelas (que, reforço, funcionam perfeitamente mesmo sujas e meu “eu” racional jamais optaria por uma limpeza dessas) e também o fogão ou foi o julgamento da minha parceira que causou liberação de determinados químicos pelo meu corpo, que acabou culminando em estímulos elétricos em alguma parte específica do meu cérebro fazendo com que numa bela manhã eu acordasse pensando “ta aí, vou fazer umas limpezas que vejo muito pouco sentido que sejam feitas!“?

E se eu realmente escolhi, qual eu tomou esta decisão? O “eu” do hemisfério esquerdo ou “eu” do hemisfério direito?

Tantas perguntas, tão pouco hemisfério cerebral pra responder.

E você? Realmente escolheu chegar até este blog e ler este artigo até aqui, ou uma série de fatores te condicionaram a isso?

E pensando agora em Dark, será que essa é a primeira vez que você tá lendo este texto?